A minha infância foi muito protegida, suave e feliz. As portas dos banheiros tinham frestas na parte inferior, para ventilação e segurança, por causa dos aquecedores a gás. A privacidade dos ocupantes estava garantida a não ser que alguém se dispusesse a deitar no chão para ter acesso ao nobre ângulo de observação. Assim, durante muitos anos, vi mulheres, de todos os tipos, tias, amigas da minha mãe, amigas da minhã irmã, primas, sempre daquela perspectiva que as agiganta, de baixo para cima, pernas como arranha-céus duplos e, entre eles, o próprio céu noturno; e muitos peitos peitinhos lá em cima, muito longe de mim. Vi calcinhas em tornozelos, coceiras ligeiras nas nádegas, tapinhas felizes nelas, vi sangue e absorventes. Eu era uma coisa muito felina naquele chão, atento a ruídos de maçaneta, passos na escadas, respirando só o mínimo, pronto para me erguer leve e rápido a qualquer momento e fugir. A minha infância era realmente muito muito protegida e os banheiros a realidade a que tinha acesso, ao menos sua parte mais importante e profunda. Essas memórias de nudez são vivas e detalhadas ainda hoje em dia. Assim, revejo em natais e aniversários amigas, primas e tia, agora com 30, 40 ou 50 anos, todas vestidas e tenho flashs de seu corpo nu e gigante, de algumas lembro inclusive da cor da calcinha.
Na tinice, lá pelos 15, comecei a ler coisas diferentes de Agatha Christie e O Gênio do Crime. Devo ter comprado As Flores do Mal no impulso vago de adolescente muito sozinho e que tem a impressão, por causa disso, de ser especial e merecer satisfazer curiosidades que outros da sua idade não têm. Também porque todo adolescente é mentiroso e farsante e cria gostos, interesses, comportamentos e emoções que ele não possui verdadeiramente mas gostaria de ter. Isso entretanto é natural e justificável por ser o tin uma pessoa com pouquíssimo passado e muito futuro e, assim, quase nenhum hábito sedimentado e um self vazio cujo conteúdo ele tem que imaginar e forjar. Portanto, mente para si mesmo o tempo todo, mas por necessidade, não tem outro jeito mesmo. É diferente do autoengano em um adulto que já consolidou, como diz Fitzgerald, aquela série de gestos bem-sucedidos que constitui a personalidade. O adulto possui alguém fixo e sólido a quem enganar, o tin não, não tem nada, só um selfinho amorfo, rarefeito e frágil que só com muita generosidade a gente chama de self. Então, foi isso: comprei o livro de Baudelaire no curso da farsa pubescente universal. Li um poema e gostei, ou fingi gostar. E resolvi ler um por dia, antes de dormir, sempre fingindo, cada vez com mais força. A partir de determinado grau de embuste e dissimulação nao faz mais diferença se é genuíno ou inventado porque a intensidade é a mesma nos dois casos. Passei a gostar muito de Baudelaire. Como num sermão, repito:
Na infancia e adolescência minha vida era muito cuidada, mimada e protegida. A idéia de morte era uma sensação tão imprecisa e fraca que posso dizer que não sabia que coisas desapareciam, tudo mudava, pessoas morriam. Passei então, como aqueles anjos babacas e pervertidos que olham para baixo e invejam o que consideram ser a beleza da miséria humana, a desejar o sofrimento. Nas Flores do Mal tem muito MUNDO, tem sordidez, ódio, humilhação, sexo, maldade, embriaguez, pobreza, assassinato, satanismo, ciúme e frustração. Acho que tem muita morte e amor, sobretudo. Lembro que eu lia sentado à minha escrivaninha. Lia duas ou três vezes até entender ou achar que entendi. Depois ficava pensando sobre o que havia lido e a impressão que resultava era muito clara: é isso o que me espera, é isso o que eu quero. Da mesma forma que desejava as mulheres que entrevia no banheiro, visava o sofrimento que Baudelaire me ajudava a imaginar, são duas experiências correlatas na minha cabeça, dois modos de preparação, ensaio e fruição indireta da mundanidade, tudo visto de fora, como espectador. Logo depois entrei de verdade na burla geral do mundo e comecei a sofrer e to sofrendo até hoje, fracassos de todos os tipos, e agora não sei mais como parar, fiquei viciado em sofrer.